sábado, 20 de fevereiro de 2010

crônica

ARQUIVO DE MEMÓRIA “PAPAI NOEL” Lembrar mesmo, com detalhes, com aquela nitidez que reproduz sons e odores, pensei que não lembrava. Isso não queria dizer que todos os Natais da minha vida foram dias comuns. Nenhum deles foi dia comum, porque não existem dias comuns. A vida não tem reprise. Não dá para viver a mesma coisa duas vezes. Nem mesmo é possível reescrever a mesma frase no mesmo tom, na mesma emoção da original. Mas Natal é prá ser caprichosamente anormal. Por isso nós sempre programamos coisas que não fazemos rotineiramente. Teria que deixar lembranças vivas, completas. Procurei o “arquivo natalino” no banco de dados da minha memória anos atrás e não encontrei. E então passei a prestar mais atenção nas coisas que aconteciam nos Natais que se seguiram. Eu queria “organizar” um arquivo de lembranças natalinas. Só agora percebo que não é possível regular a intensidade das emoções, não existe painel de controle para agendar melancolia no outono e euforia no verão. Será que não vivi emoções relevantes em Natal algum da minha vida? Por isso é que não tenho nenhuma lembrança num padrão superprodução cinematográfica? Aqui e ali afloram lembranças singelas, rostos queridos, presentinhos comprados por meu pai e minha mãe à custa de esforço e de renúncia a bens mais úteis. Só agora conclui que certos arquivos de memórias precisam de motivação para ser abertos, como se fosse um código. Eu sempre tive memórias natalinas arquivadas, mas elas estavam ocultas atrás de outros arquivos. Nesse momento estou recuperando algumas; Foi num dia de Natal que travei conhecimento com o vaso sanitário. Nunca tinha visto um deles antes, sequer imaginava que existiam casas com privadas daquele jeito. Não me deram instruções claras. Acabei puxando a cordinha de descarga ainda sentado no vaso. Nunca esqueci aquele jato d’água fria atingindo traiçoeiramente a minha desprevenida bunda. Muito menos o barulho da água percorrendo, sob pressão, os canos escondidos na parede. O ruído que ouvi pela primeira vez naquele Natal é relativamente igual ao que a maioria dos vasos sanitários faz hoje em dia. Demorei algum tempo para me acostumar com aquilo. Tinha medo do barulho e por isso acionava a descarga de longe, de preferência usando o cabo de um rodo, sempre à mão na maioria dos banheiros das casas de gente simples. Lembro-me de uma véspera de Natal. E essa lembrança tem todos os sons, luzes, odores, frases e até o contato da mão de meu pai segurando a minha, enquanto caminhávamos pelas calçadas a avenida iluminada, no começo da noite véspera de Natal. Não me lembro quantos anos tinha, mas sei que a música que se destacava era o mesmo “dingobel” de hoje. Entramos numa loja chamada Casa das Noivas e só então papai me disse que estávamos ali pra comprar meu presente de Natal. Nós tínhamos passado por várias lojas de brinquedos e ele resolve entrar numa que vendia coisas para noivas? Meu pai cumprimentou o senhor Badé Turco, homem alto, gordo, de rosto enorme e bigode negro que se confundia com a pele escura. Era o dono da loja, todo mundo sabia disso, até as crianças. E todo moleque tinha medo dele, porque não permitia que a gente ficasse perambulando dentro da loja, olhando vitrines. Ninguém se importava com essa mania das crianças daquele bairro, mesmo o “seo” Badé. Só uma vez estive lá, junto com outros meninos. Fomos enxotados e eu nunca mais me atrevi a sequer passar na calçada. Num canto da loja cheia de véus e grinaldas havia bancas e prateleiras cheias de brinquedos. O brinquedo mais desejado pelos meninos naquele Natal era um revólver negro, de cabo branco, com cinturão e coldre. Também tinha o cinturão duplo, com duas armas de brinquedo. Esse sim era o máximo. E lá estavam eles, reluzentes, com um rolo de papel espoleta de brinde. A esperada liberação para que eu mesmo escolhesse o presente não veio e então tratei de sugerir o cinturão do Ringo. E foi então que papai me disse que jamais presentearia filho nenhum com qualquer tipo de arma. E ele mesmo apanhou um pequeno violão branco e vermelho, que podia receber afinação nas cordas de aço e emitir notas musicais verdadeiras. Sai da loja de cabeça baixa, com o violãozinho embrulhado debaixo do braço. Não era bem aquilo que eu queria, mas meu pai estava feliz. Ele cantarola a música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, de quem ele dizia ser amigo de infância, como um dia provou que era mesmo. Papai era um homem sisudo, pouco afeito a carícias e sorrisos. O máximo que se permitia era caminhar segurando a mão da gente. E aquela também foi a primeira vez que saíamos só nós dois. Paramos numa lanchonete, papai me deu uma Sodinha, tomou uma cerveja e quando retomamos a caminhada ele não segurava mais a minha mão. Agora a grande mãe de meu pai repousava na minha cabeça e seus dedos brincavam com meus cabelos. Ele me puxou para bem junto da perna, passou o outro braço por trás das costas e procurou o meu braço que estava espremido contra sua coxa. Era difícil caminhar abraçados daquele jeito esquisito e o entrelaçamento foi desfeito. Só fisicamente, porque nunca me esquecerei da ternura e do carinho externado por papai naquela véspera de Natal. Esqueci Ringo e o revólver de espoleta, me esforcei para aprender a tocar violão. Aprendi as posições, mas nunca tive ritmo. O importante é que nunca mais perdi a menor chance que tinha para acariciar os cabelos brancos de papai. E toda vez ele fingia estar incomodado com meus chamegos, mas nunca me ordenou que saísse de perto. Tenho, portanto, preciosa pasta no arquivo das lembranças natalinas. Foi naquela véspera de Natal que pude entender que as pessoas teem diferentes maneiras pra expressar amor e carinho. Meu pai fez isso maneira singela, quase envergonhada. Essa pasta está guardada no meu arquivo de memórias com o nome PAPAI NOEL."

Um comentário:

Unknown disse...

Tudo que vc escreve é de uma sabedoria enorme por isso te admiro cada dia mais de sua amiga Giovanda